Matéria publicada no Jornal Mundo Espírita - agosto/2004
Os evangelistas, ao relatarem os fatos da prisão à morte de Jesus, omitem pormenores macabros. Percebe-se que estão claramente interessados em salientar o essencial na trágica ocorrência: a serenidade do Mestre, um pensamento de conforto para as lágrimas das mulheres de Jerusalém, uma lembrança para sua mãe e o discípulo ao pé da cruz, o perdão aos responsáveis pela sua morte, uma frase de conforto aos desditosos a seu lado.
Do vale de Tiropeion, onde foi condenado, Jesus percorreu subindo, com o patíbulo aos ombros, meio quilômetro em linha reta, até chegar a saliência da rocha conhecida como Crânio, por causa de sua forma lisa e arredondada. (Calvarium em latim, Golgota em aramaico).
Possivelmente por terem dado ênfase ao que mais impressionou no Celeste Amigo, desde o momento da prisão, o julgamento arbitrário e a execução da sentença infamante, é que igualmente foram lacônicos quanto a um personagem daqueles momentos.
Mateus (27:32), Marcos (15:21) e Lucas (23:26) dedicam um versículo ao episódio, limitando-se a escrever que "encontraram um homem de Cirene, chamado Simão; e obrigaram-no a levar a cruz de Jesus"; "e obrigaram um certo homem, que ia passar, Simão de Cirene, que vinha do campo, pai de Alexandre e de Rufo, a tomar a cruz de Jesus"; "agarraram um certo Simão Cireneu, que voltava do campo; e puseram a cruz sobre ele, para que a levasse após de Jesus".
Cirene era uma colônia agrícola da Grécia, de acesso quase impossível pela presença rival de Cartago. Situada na costa líbia, foi construída no ano 631 a.C e teve grande vitalidade. Desde o ano 75 a.C. passou a ser província romana e ali moravam muitos judeus.
Homem do campo e do trabalho rude, não gostava de ajuntamentos e confusões. Embora não odiasse os romanos, por instinto e sistema não queria jamais ter nada a ver com a autoridade, nem com a justiça, nem com o exército.
Pouco se sabe a respeito dele. Os Evangelhos não nos permitem elucubrações mais profundas a respeito de sua personalidade.
Homem de Cirene, Cireneu, ou Simão, como o denominam Marcos e Lucas, foi requisitado por um oficial romano a carregar a cruz do prisioneiro que, enfraquecido, sucumbia no caminho, àquele peso. Como representante da autoridade, o procurador Pôncio Pilatos, o militar tinha aquela prerrogativa.
Tudo que lhe envolve a vida permanece na obscuridade, o que com certeza inspirou a um italiano escrever a respeito do que teria ocorrido ao Homem de Cirene, após o contato com o Mestre de Nazaré.
Permitimo-nos, aqui, ao sabor do que o próprio escritor denominou de "lenda", apresentar uma versão tocada da gratidão Daquele que é nosso Modelo e Guia.
Simão vinha do campo e pretendia entrar em Jerusalém, rumo à sua casa, naquele dia. Viu o cortejo, tendo à frente soldados romanos a pé e a cavalo, conduzindo condenados ao suplício.
Um deles caiu de mau jeito, já incapaz de carregar a cruz. Simão, porque não pudesse passar através da multidão, parou de encontro ao vão de uma porta. Foi então que o centurião o descobriu e percebendo que ele era forte, chamou-o com a mão e com a voz.
A uma ordem assim dada não havia como se esquivar. Resmungando intimamente, o Cireneu acomodou sobre o ombro o instrumento de suplício e se encaminhou para a frente, ansioso por se libertar daquela carga e da raiva.
O condenado apresentava um rosto abatido, empapado de suor e riscado de filetes de sangue.
A cruz pesava, sobre os ombros fortes de Simão. Enquanto caminhava, esquivando-se olhar o prisioneiro, pois não suportava sangue, começou a pensar na sua vida.
Em seu pequeno campo, a água era escassa, os ratos tinham causado dano à cevada. Seu filho mais velho, Alexandre, estava muito mal e ele ainda deveria providenciar o necessário para a Páscoa.
Viera de sua nativa Cirene há poucos anos. Não conhecia quase ninguém na Cidade Santa. Desconhecia os acontecimentos daquele dia, não sabia quem era o prisioneiro.
Mal chegou ao Calvário, desceu a cruz e dando-se conta que ninguém mais atentava para ele, esgueirou-se por entre os ajuntamentos de pessoas e demandou a casa.
A caminho, já imaginava o que lhe diria a mulher, sempre pronta a repreender e a se inflamar. Preparou-se para o temporal e ao chegar, antes que ela pudesse abrir a boca, pôs-lhe docemente uma das mãos no ombro, uma daquelas mãos que tinham mantido e agarrado o lenho destinado ao Galileu.
Mikal olhou o marido calma e falou de forma pacífica, o que o deixou surpreso. Depois, Simão foi para o quarto do filho Alexandre que parecia dormir, dominado pela febre. Quando o rapaz, ainda meio adormecido, porque respirasse mal, fez menção de se levantar, o pai o envolveu com os dois braços, aconchegou-o ao peito, buscando melhor acomodá-lo no leito.
Seus filhos eram seus maiores amores. Alexandre pareceu se sentir melhor ao contato da espádua do pai. Simão a sentia mortificada pelo peso da cruz, mas não teve coragem de afastar o filho daquele aconchego.
Horas depois, a febre se fora e a casa respirava alegria. O que estava acontecendo é o que a esposa desejava saber. O marido estava diferente.
Naquele final de tarde, um devedor de muito tempo veio à casa e, com desculpas pela demora, agradecendo pelo favor e a paciência, pagou integralmente a dívida.
Dias mais tarde, um rapaz jovem e uma mulher foram procurar Simão. Ele fora reconhecido e indicado como quem auxiliara Jesus a carregar a cruz. A mulher chamava-se Maria e vinha agradecer, beijando as mãos misericordiosas do benfeitor de seu filho.
Simão ficou sabendo, então, quem havia auxiliado e começou a pensar nas tantas bênçãos que recebera desde então.
Não passou muito tempo para que discípulos ou inimigos do Nazareno o procurassem, desejando ouvir detalhes.
E porque não apreciasse a curiosidade ou porque, cavando um novo poço, encontrara uma ânfora com moedas e jóias e desejava gozar em paz o tesouro, decidiu abandonar Jerusalém.
Vendeu o campo, a casa, e com a mulher e os filhos partiu para a capital do Império.
Graças ao seu labor, o tesouro se multiplicou. Em sua família, ocorreu uma profunda revolução espiritual. Mikal e os filhos foram conquistados pela palavra de um certo Paulo de Tarso e se tornaram cristãos.
A casa de Simão se tornou ponto de Encontro dos novos adeptos e não tardou que a história de seu encontro com Jesus viesse à tona. Por mais se esquivasse, de início, logo estava sentindo prazer em relatar pormenores que, diga-se, não eram muitos.
Mas, afirmava-se agradecido, das bênçãos que passara a gozar e que ele reportava exclusivamente à bondade do Mestre da Cruz.
Angariou notabilidade na comunidade cristã, embora não se considerasse verdadeiramente cristão.
Na primeira perseguição aos cristãos, ele foi preso. Todas as provas eram contra ele. Ele chegara a carregar a cruz para o seu Mestre.
E, numa noite, ele foi pendurado a uma cruz, teve seu corpo untado de betume e ardeu como um archote para iluminar os jardins do Imperador.
A província romana de Cirene deu alguns filhos ilustres ao mundo como Jason, que escreveu importante descrição sobre a rebelião dos Macabeus, e Lúcio, pregador na comunidade cristã de Antioquia.
"...mas, nenhum deles conseguiu o galardão que aquele anônimo trabalhador alcançou, ao cooperar com Jesus Cristo, sem sequer conhecê-Lo, naqueles momentos de testemunho e de definição muito graves." (4)
Bibliografia:
01. GAROFALO, S. et al. Morrer em uma cruz. In:___. Vida de Cristo. São Paulo: PAULINAS, 1982. cap. 16.
02. PAPINI, Giovanni. O cireneu. In:___. As testemunhas da paixão - sete lendas do evangelho. São Paulo: SARAIVA, 1950. cap. 4.
03. ROHDEN, Huberto. Caminho do Calvário. In:___. Jesus nazareno. 6.ed. São Paulo: União Cultural. v. 2, cap. 187.
04.TEIXEIRA, J. Raul. Jesus e o cireneu. In:___. Vida e mensagem. Pelo espírito Francisco de Paula Vítor. Niterói: FRÁTER, 1993. cap. 9.
05.VAN DER OSTEN, A . José. In:___. Dicionário enciclopédico da bíblia. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1985, verbetes Cirene e Simão.
06.ENCICLOPÉDIA Mirador Internacional. Rio de Janeiro: Britannica, 1986. v. 10, verbete Grécia 1.50 e 3.7.6.
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